sábado, 22 de junho de 2013

Análise do Poema em linha reta, de Fernando Pessoa, na voz de Osmar Prado














Trabalho de Fonologia

Análise do Poema em linha reta, de Fernando Pessoa, na voz de Osmar Prado

João de Deus Vieira Alves
Lucas Reis Gonçalves




Por afinidade, gosto ou (a ilusão de menos) trabalho, selecionamos a obra poética de Fernando Pessoa para realizar a análise fonológica proposta pelo cronograma da disciplina. Não apenas uma “obra poética” do bastante venerado poeta português, mas a realização oral dessa obra. Dentre as tantas interpretações que circulam pelo meio virtual, uma delas nos chamou a atenção: Osmar Prado, na novela O Clone, fazia um personagem alcoólatra que lia, e não só lia, falava Fernando Pessoa em diferentes situações da trama novelística. E, numa dessas, pego no flagra, com o uísque na mão, ele desatou a declamar o poema mais que famoso Poema em linha reta. E foi por aí que iniciamos o namoro com o material. Pelo Clone, vê só.
A gravação, como quase tudo hoje, está disponível no YouTube – site de compartilhamento de vídeos que dispensa maiores apresentações. Com base nela, numa duração de aproximadamente dois minutos e meio, recolhemos informações suficientes (e até demais!) para execução da análise em questão.
Ressaltando aqui que a gravação utilizada de fonte para a coleta de dados provém de um trecho de um episódio d’O Clone, é importante também lembrar que o texto falado pelo ator não coincide exatamente com a obra original. Adaptando algumas coisas para a situação em ação e cortando outras, o personagem de Osmar Prado desenvolve a sua leitura sobre o poema de Pessoa. Assim sendo, o discurso que importa a nós, nesse momento, é o do personagem. E é ele que é transcrito aqui, com suas versões em transcrição fonética e transcrição fonológica:

Eu nunca conheci quem tivesse levado porrada.
[Èew Ènu0k« koøeÈsi ke0J0tSiÈvEsI leÈvadU poÈXad«]
/Èeu ÈnuNka koNeÈsi keNtiÈvEse leÈvado poÈrada/

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
[ÈtodUz ÈuZ ÈmewS koøeÈsidUs te0J0ÈsidU ka0peÈo0J0s i00ÈtudU]
/Ètodos Èos Èmeus koNeÈsidos teNÈsido kaNpeÈoeNs eNÈtudo/

E eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
[iÈew kiÈta0t«Z 8 ÈvezIs ÈteøU ÈsidU XiÈdZikUlU abi 8ÈsuXdU]
/eÈeu keÈtaNtas Èvezes Èteøo Èsido riÈdikulo abiÈsurdo/

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
[kiÈteøU soÈfRidU i0S0oÈvalJUz ikaÈladU]
/keÈteøo soÈfRido eNSoÈva´os ekaÈlado/

Quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
[ÈkWa0dU Èna0w0 ÈteøU kaÈladU ÈteøU ÈsidU maXiÈdZicUlU aÈi0d«]
/kuÈaNdo ÈnaN+o  Èteøo kaÈlado Èteøo Èsido maRiÈdikulo aÈiNda/

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
[Èew kiÈteøU ÈfejtU veXÈgoø«S finaÈ0seR«S peÇdZidwi00pReSÈtadU  Èse0J0 paÈgaX]
/Èeu keÈteøo Èfeito verÈgoøas finaNÈseras peÇdidoeNpresÈtado ÈseN paÈgar/

Que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
[kiÇkWa0daȍR« duÈsokU suRÈZiw miÈteøU agaÈSadU]
/kekuÇandaȍRa doÈsoko suRÈZiu meÈteøo agaÈSado]

Pra fora da possibilidade do soco;
[pRaÈfR« daposibiliÈdad duÈsokU]
/pRaÈfRa daposibiliÈdad duÈsoko/

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
[Èew veRiÈfikU Èki Èna0w0 ÈteøU ÈpaX ÇniStuÈtudU ÈneStSI Èmu0dU]
/Èeu veRiÈfiko Èke ÈnaN+o Èteøo Èpar ÇnistuÈtudo Èneste ÈmuNdo/

Todo mundo que eu conheço e que conversa comigo
[ÇtoduÈmu0dU ÈkJew koÈøesU ikiko0ÈvEXs« kuÈmigU]
/ÇtodoÈmuNdo Èkeu koÈøeso ekekoNÈvErsa koÈmigo/

Nunca teve um ato ridículo,
[Ènu0k« teviu0ÈatU XiÈdZikUlU]
/ÈnuNka teviÈuNato riÈdikulo/

Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
[Ènu0k« Èfoj siÈna0w0 ÈpRinsipI ÇtoduÈzelIS ÈpRinsipIs naÈvid«]
/ÈnuNka Èfoi seÈnaN+o ÈpRinsipe ÇtoduÈzeles ÈpRinsipes naÈvida/

Ah,ah, quem me dera ouvir de alguém a voz humana
[Èa Èa Èke0J0 miÇdERoÈvi dZjAÈge0J0 Èa ÇvozuÈma0n«]
/Èa Èa ÈkeN meÇdERoÈvi dealÈgueN Èa ÇvozuÈmana/

Que me confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
[Çkimiko0feÈsasI Èna0w0 peÈkadU Èmajs ÇumajnÈfa0mi«]
/ÇkemekoNfeÈsase ÈnaN+o peÈkado Èmais ÇumainÈfamia/

Que me contasse, não um ato de violência, mas uma covardia!
[ÇkimikoÈ0tasI Èna0w0 u0ÈatU ÈdZi vjoÈle0sj« ÇmajÈzum« kovaXÈdZi«]
/ÇkemekoNÈtase ÈnaN+o uNÈato Ède vioÈleNsia ÇmaiÈzuma kovarÈdia/

Ó príncipes, meus irmãos,
[ȍ ÈpRinsipIs mewziXÈma0w0s]
/ȍ ÈpRinsipes meuzirÈmaN+os/

Onde é que há gente no mundo?
[onÈdEkj« ÈZe0tSI nuÈmundU]
/onÈdEkea ÈZeNte noÈmundo/

Poderão as mulheres não os terem amado,
[podeÈRa0w0 ÈaZ 8 muÈlJERIS 8 Èna0w0S ÈterI0 aÈmadU]
/podeÈRaN+o Èas muÈ´ERes ÈnaN+os ÈtereN aÈmado/

Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! Nunca!
[Èpde0J0 teXÈsidU tRaÈidUz Èmajs XiÈdZikUlUZ Ènu0k« Ènu0k«]
/ÈpdeN tersÈido tRaÈidos Èmais riÈdikulos ÈnuNka ÈnuNka/

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
[iÈew kiÈteøU ÈsidU XiÈdZikUlU Èse0J0 teXÈsidU tRaÈidU]
/eÈeu keÈteøo Èsido riÈdikulo ÈseN tersÈido tRaÈido/

Como é que eu posso falar com os meus superiores sem titubear?
[koÈmwE kiÈew ÈpsU faÈla ku0ZÈmews supeÈRjoRIs Èse0J0 tSitubeÈaX]
/komoÈE keÈeu Èpso faÈla koNsÈmeus superiÈores ÈseN titubeÈar/

Sem meter goela abaixo pelo menos um bom gole de uísque ou de cachaça?
[Èse0J0 meÈte guÇelaÈbaSU ÈpelU ÇmenUÈzu0 Èbo0w0 ÈglI dZiÈwiSkI Èow ÈdZI kaÈSas«]
/ÈseN meÈte guÇelaÈbaSo Èpelo ÇmenuÈzuN ÈboN Ègle diuÈiske Èou Ède kaÈSasa/

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
[Èew kiÈteøU ÈsidU Èviw literawÈme0tSI Èviw]
/Èeu keÈteøo Èsido ÈviL literaÈmeNte ÈviL/

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
[Èviw nusenÈtSidU meSÈkiøU Èi iÈ0fa0mI Èda viÈlez«]
/ÈviL nosenÈtido mesÈkiøo Èe iNÈfame Èda viÈleza/

Análise dos processos no Poema em linha reta

                Antes de iniciar a análise dos processos em si, seria interessante destacarmos os desconfortos que tivemos em relação às transcrições fonética e fonológica.  Primeiro, e com grande intensidade, a alternância evidente entre as fricativas alveolares ([s] e [z]) e as fricativas alveolo-palatais ([S] e [Z]) na fala de Prado, como em

[Ènu0k« Èfoj siÈna0w0 ÈpRinsipI ÇtoduÈzelIS ÈpRinsipIs naÈvid«]
e em
[iÈew kiÈta0t«Z 8 ÈvezIs ÈteøU ÈsidU XiÈdZikUlU abi 8ÈsuXdU]
               
Como se vê, há uma clara variação da pronúncia do ator. Parece haver, dentro do discurso todo, traços do sotaque carioca – traços esses em evidência na problematização proposta – que, naturais, permeiam a declamação. Em momentos de maior ênfase, ele dá prioridade às fricativas alveolares.  Já quando corre rapidamente o verso, cai em algumas fricativas alvéolo-palatais -  ainda que, às vezes, fracamente.
O segundo desconforto, porém muito menor, é provocado também pelo sotaque carioca. No uso das róticas em posição de coda, como em [abi 8ÈsuXdU] exigiu um particular cuidado durante a audição. Fora isso, o trabalho foi o mesmo. Cansativo e bastante relativizado.
Agora, quanto aos processos, podemos começar pelos níveis hierarquizados através das aulas da disciplina. Ou seja, a partir da ordem de apresentação dos processos fonológicos produzida em aula, iniciaremos a análise de cada processo e sua ocorrência no material produzido pela declamação do ator da novela.

1.        Apagamento
Temos, em alguns determinados momentos, a supressão de um elemento (consoante e vogal) no meio de palavra, como em

[ÈkWa0dU Èna0w0 ÈteøU kaÈladU ÈteøU ÈsidU maXiÈdZicUlU aÈi0d«]

Nesse caso, temos supressão de uma vogal [i] (ou semi-vogal [j]) e uma consoante [s] ou [Z]. Conforme o estudo da Fonologia, esse processo de apagamento é comumente chamado de síncope.

Outro tipo de apagamento corrente na análise fonológica é a apócope, que define a supressão de elementos no final da palavra. Esse tipo de apagamento ocorre também na fala do poema de Pessoa em situações como

[pRaÈfR« daposibiliÈdad duÈsokU]
ou
[Èa Èa Èke0J0 miÇdERoÈvi dZjAÈge0J0 Èa ÇvozuÈma0n«]

Nesse último trecho de fala, temos um apagamento da líquida final /r/, o que não deixa de caracterizar o evento como a supressão do elemento no final da palavra.

Há também, funcionando como apagamento, a monotongação, que suprime uma vogal do encontro vocálico como ditongo. Vê-se, por exemplo, em

[Èew kiÈteøU ÈfejtU veXÈgoø«S finaÈ0seR«S peÇdZidwi00pReSÈtadU  Èse0J0 paÈgaX]

ou em
[miÇdERoÈvi]

Em ambos os casos, temos o apagamento de elementos no interior das palavras.

2.      Assimilação
Assim como o processo de apagamento, as assimilações tomam lugar de vários versos do poema.  Temos, por exemplo, a assimilação da nasalidade pela vogal que a antecede em passagens do tipo
/ÈviL nosenÈtido mesÈkiøo Èe iNÈfame Èda viÈleza/
ou
/Èa Èa ÈkeN meÇdERoÈvi dealÈgueN Èa ÇvozuÈmana/

Em outros momentos, encontramos o vozeamento de fricativas pelo fato de estarem na posição anterior a um elemento sonorizado, como em
[Èpde0J0 teXÈsidU tRaÈidUz Èmajs XiÈdZikUlUZ Ènu0k« Ènu0k«]

3.      Epêntese
Dentro do discurso de Osmar Prado, encontra-se um caso de inserção de uma vogal (breve) para a pronúncia da palavra ‘absurdo’ em
[iÈew kiÈta0t«Z 8 ÈvezIs ÈteøU ÈsidU XiÈdZikUlU abi 8ÈsuXdU]

4.      Crase
Temos uma situação especial, que pode talvez vir a ser definida como apagamento, mas preferimos tratar como crase. O encontro de duas vogais, formando uma (no caso a ser exposto, uma glide), seria capaz de definir esse processo que pode ser visto aqui:
[podeÈRa0w0 ÈaZ 8 muÈlJERIS 8 Èna0w0S ÈterI0 aÈmadU]
Aqui as vogais de mesmo som das duas palavras acabam se combinando e sendo pronunciadas conjuntamente. Torna-se possível assim, pelo ritmo e pela fluidez do texto, reunir os fonemas em apenas um fone só.

Conclusões e observações
                De largada, assumimos uma conclusão óbvia e bastante presente no decorrer do trabalho: o trabalho. A labuta toda pra produzir – principalmente – as transcrições e ouvir e reouvir o áudio da declamação do poema nos fez virar a cabeça umas quantas vezes, umas para trocar de ouvido, e outras pra arejar ela própria. A voz do Osmar Prado, ator decorado há muito, já se tornou irritante. Pobre homem.
                Mas é aí que está a graça. A partir desse esforço todo, na tentativa de escutar uma fricativa mais posterior ou mais anterior; de ouvir um /r/ carioca e não um /R/ gaúcho; de entender onde há apagamento, onde há epêntese; a partir de tudo isso, visualizamos algumas fronteiras e limites que desenham as ferramentas e os terrenos da Fonologia e da Fonética.
                Já no âmbito da especificidade do discurso poético, o esquema é outro. Nota-se facilmente a peculiaridade desse tipo de fala. Contrário a uma conversa espontânea ou uma gravação de certo corpus delimitado, a poesia declamada adquire aqui um caráter único na sua realização. O ritmo, a sucessão de fonemas, a ênfase em determinados pontos da pronúncia são características que moldam uma espécie de fala pré-estabelecida, fala essa com um fluxo de linguagem ágil e correto. Correto no sentido de completo – unitário. Esse fator de unidade dá a poesia uma sutil ideia de texto decorado – um texto exato. Não é à toa que esse fluxo acaba aglutinando todos os versos, um sobre o outro, verso sobre verso, até confundir a cabeça de quem os analisa.

                Tudo isso para explicitar a dificuldade pela qual passamos e por qual, provavelmente, todo o fonólogo já passou algum dia.