Análise do Poema em linha reta, de Fernando Pessoa, na voz de Osmar Prado
João
de Deus Vieira Alves
Lucas
Reis Gonçalves
Por afinidade, gosto ou (a ilusão de menos) trabalho, selecionamos a obra poética de Fernando Pessoa para realizar a análise fonológica proposta pelo cronograma da disciplina. Não apenas uma “obra poética” do bastante venerado poeta português, mas a realização oral dessa obra. Dentre as tantas interpretações que circulam pelo meio virtual, uma delas nos chamou a atenção: Osmar Prado, na novela O Clone, fazia um personagem alcoólatra que lia, e não só lia, falava Fernando Pessoa em diferentes situações da trama novelística. E, numa dessas, pego no flagra, com o uísque na mão, ele desatou a declamar o poema mais que famoso Poema em linha reta. E foi por aí que iniciamos o namoro com o material. Pelo Clone, vê só.
A gravação, como quase
tudo hoje, está disponível no YouTube – site de compartilhamento de vídeos que
dispensa maiores apresentações. Com base nela, numa duração de aproximadamente
dois minutos e meio, recolhemos informações suficientes (e até demais!) para
execução da análise em questão.
Ressaltando aqui que a
gravação utilizada de fonte para a coleta de dados provém de um trecho de um
episódio d’O Clone, é importante
também lembrar que o texto falado pelo ator não coincide exatamente com a obra
original. Adaptando algumas coisas para a situação em ação e cortando outras, o
personagem de Osmar Prado desenvolve a sua leitura sobre o poema de Pessoa.
Assim sendo, o discurso que importa a nós, nesse momento, é o do personagem. E
é ele que é transcrito aqui, com suas versões em transcrição fonética e
transcrição fonológica:
Eu nunca conheci quem
tivesse levado porrada.
[Èew Ènu0k«
koøeÈsi
ke0J0tSiÈvEsI
leÈvadU
poÈXad«]
/Èeu ÈnuNka koNeÈsi keNtiÈvEse leÈvado poÈrada/
Todos os meus conhecidos
têm sido campeões em tudo.
[ÈtodUz ÈuZ ÈmewS
koøeÈsidUs
te0J0ÈsidU
ka0peÈo0J0s
i00ÈtudU]
/Ètodos Èos Èmeus
koNeÈsidos
teNÈsido kaNpeÈoeNs eNÈtudo/
E eu,
que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
[iÈew kiÈta0t«Z
8 ÈvezIs
ÈteøU
ÈsidU
XiÈdZikUlU
abi 8ÈsuXdU]
/eÈeu keÈtaNtas Èvezes Èteøo
Èsido
riÈdikulo
abiÈsurdo/
Que
tenho sofrido enxovalhos e calado,
[kiÈteøU soÈfRidU
i0S0oÈvalJUz
ikaÈladU]
/keÈteøo soÈfRido
eNSoÈva´os
ekaÈlado/
Quando
não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
[ÈkWa0dU Èna0w0 ÈteøU
kaÈladU
ÈteøU
ÈsidU
maXiÈdZicUlU
aÈi0d«]
/kuÈaNdo ÈnaN+o Èteøo
kaÈlado
Èteøo
Èsido
maRiÈdikulo
aÈiNda/
Eu, que
tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
[Èew kiÈteøU
ÈfejtU
veXÈgoø«S
finaÈ0seR«S
peÇdZidwi00pReSÈtadU
Èse0J0 paÈgaX]
/Èeu keÈteøo
Èfeito
verÈgoøas
finaNÈseras peÇdidoeNpresÈtado ÈseN paÈgar/
Que,
quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
[kiÇkWa0daÈR«
duÈsokU
suRÈZiw
miÈteøU
agaÈSadU]
/kekuÇandaÈRa
doÈsoko
suRÈZiu
meÈteøo
agaÈSado]
Pra
fora da possibilidade do soco;
[pRaÈfR«
daposibiliÈdad
duÈsokU]
/pRaÈfRa
daposibiliÈdad
duÈsoko/
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
[Èew veRiÈfikU Èki
Èna0w0
ÈteøU
ÈpaX
ÇniStuÈtudU
ÈneStSI
Èmu0dU]
/Èeu veRiÈfiko Èke
ÈnaN+o Èteøo Èpar
ÇnistuÈtudo
Èneste
ÈmuNdo/
Todo mundo que eu conheço e que conversa comigo
[ÇtoduÈmu0dU ÈkJew
koÈøesU
ikiko0ÈvEXs«
kuÈmigU]
/ÇtodoÈmuNdo Èkeu koÈøeso
ekekoNÈvErsa koÈmigo/
Nunca teve um ato ridículo,
[Ènu0k« teviu0ÈatU
XiÈdZikUlU]
/ÈnuNka teviÈuNato riÈdikulo/
Nunca
foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
[Ènu0k« Èfoj
siÈna0w0
ÈpRinsipI
ÇtoduÈzelIS
ÈpRinsipIs
naÈvid«]
/ÈnuNka Èfoi seÈnaN+o ÈpRinsipe ÇtoduÈzeles
ÈpRinsipes
naÈvida/
Ah,ah, quem me dera ouvir de alguém a voz humana
[Èa Èa Èke0J0
miÇdERoÈvi
dZjAÈge0J0
Èa
ÇvozuÈma0n«]
/Èa Èa ÈkeN meÇdERoÈvi dealÈgueN Èa ÇvozuÈmana/
Que me confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
[Çkimiko0feÈsasI Èna0w0
peÈkadU
Èmajs
ÇumajnÈfa0mi«]
/ÇkemekoNfeÈsase ÈnaN+o peÈkado Èmais
ÇumainÈfamia/
Que me contasse, não um ato de violência, mas uma covardia!
[ÇkimikoÈ0tasI Èna0w0
u0ÈatU
ÈdZi
vjoÈle0sj«
ÇmajÈzum«
kovaXÈdZi«]
/ÇkemekoNÈtase ÈnaN+o uNÈato Ède vioÈleNsia ÇmaiÈzuma
kovarÈdia/
Ó
príncipes, meus irmãos,
[È ÈpRinsipIs mewziXÈma0w0s]
/È ÈpRinsipes meuzirÈmaN+os/
Onde é
que há gente no mundo?
[onÈdEkj« ÈZe0tSI
nuÈmundU]
/onÈdEkea ÈZeNte noÈmundo/
Poderão as mulheres não
os terem amado,
[podeÈRa0w0 ÈaZ
8 muÈlJERIS
8 Èna0w0S
ÈterI0
aÈmadU]
/podeÈRaN+o Èas muÈ´ERes
ÈnaN+os ÈtereN aÈmado/
Podem ter sido traídos -
mas ridículos nunca! Nunca!
[Èpde0J0 teXÈsidU
tRaÈidUz
Èmajs
XiÈdZikUlUZ
Ènu0k«
Ènu0k«]
/ÈpdeN tersÈido tRaÈidos
Èmais
riÈdikulos
ÈnuNka ÈnuNka/
E eu, que tenho sido
ridículo sem ter sido traído,
[iÈew kiÈteøU
ÈsidU
XiÈdZikUlU
Èse0J0
teXÈsidU
tRaÈidU]
/eÈeu keÈteøo
Èsido
riÈdikulo
ÈseN tersÈido tRaÈido/
Como é que eu posso falar
com os meus superiores sem titubear?
[koÈmwE kiÈew ÈpsU
faÈla
ku0ZÈmews
supeÈRjoRIs
Èse0J0
tSitubeÈaX]
/komoÈE keÈeu
Èpso
faÈla
koNsÈmeus
superiÈores
ÈseN titubeÈar/
Sem meter goela abaixo pelo
menos um bom gole de uísque ou de cachaça?
[Èse0J0 meÈte guÇelaÈbaSU
ÈpelU
ÇmenUÈzu0
Èbo0w0
ÈglI
dZiÈwiSkI
Èow
ÈdZI
kaÈSas«]
/ÈseN meÈte guÇelaÈbaSo
Èpelo
ÇmenuÈzuN ÈboN Ègle diuÈiske
Èou
Ède
kaÈSasa/
Eu, que tenho sido vil,
literalmente vil,
[Èew kiÈteøU
ÈsidU
Èviw
literawÈme0tSI
Èviw]
/Èeu keÈteøo
Èsido
ÈviL literaÈmeNte ÈviL/
Vil no sentido mesquinho
e infame da vileza.
[Èviw nusenÈtSidU
meSÈkiøU
Èi
iÈ0fa0mI
Èda
viÈlez«]
/ÈviL nosenÈtido mesÈkiøo
Èe
iNÈfame Èda viÈleza/
Análise
dos processos no Poema em linha reta
Antes de iniciar a análise dos
processos em si, seria interessante destacarmos os desconfortos que tivemos em
relação às transcrições fonética e fonológica.
Primeiro, e com grande intensidade, a alternância evidente entre as
fricativas alveolares ([s] e [z]) e as fricativas alveolo-palatais ([S] e [Z]) na fala de Prado,
como em
[Ènu0k«
Èfoj
siÈna0w0
ÈpRinsipI
ÇtoduÈzelIS ÈpRinsipIs naÈvid«]
e em
[iÈew
kiÈta0t«Z
8 ÈvezIs ÈteøU
ÈsidU
XiÈdZikUlU
abi 8ÈsuXdU]
Como se vê, há uma clara variação da pronúncia do ator. Parece
haver, dentro do discurso todo, traços do sotaque carioca – traços esses em
evidência na problematização proposta – que, naturais, permeiam a declamação.
Em momentos de maior ênfase, ele dá prioridade às fricativas alveolares. Já quando corre rapidamente o verso, cai em
algumas fricativas alvéolo-palatais -
ainda que, às vezes, fracamente.
O segundo desconforto, porém muito menor, é provocado também pelo
sotaque carioca. No uso das róticas em posição de coda, como em [abi 8ÈsuXdU] exigiu um particular cuidado durante a audição. Fora isso, o
trabalho foi o mesmo. Cansativo e bastante relativizado.
Agora, quanto aos processos, podemos começar pelos níveis
hierarquizados através das aulas da disciplina. Ou seja, a partir da ordem de
apresentação dos processos fonológicos produzida em aula, iniciaremos a análise
de cada processo e sua ocorrência no material produzido pela declamação do ator
da novela.
1.
Apagamento
Temos, em alguns
determinados momentos, a supressão de um elemento (consoante e vogal) no meio
de palavra, como em
[ÈkWa0dU
Èna0w0
ÈteøU
kaÈladU
ÈteøU
ÈsidU
maXiÈdZicUlU
aÈi0d«]
Nesse caso, temos
supressão de uma vogal [i] (ou semi-vogal [j]) e uma consoante [s] ou [Z]. Conforme o estudo da
Fonologia, esse processo de apagamento é comumente chamado de síncope.
Outro tipo de apagamento
corrente na análise fonológica é a apócope, que define a supressão de elementos
no final da palavra. Esse tipo de apagamento ocorre também na fala do poema de
Pessoa em situações como
[pRaÈfR« daposibiliÈdad duÈsokU]
ou
[Èa
Èa
Èke0J0
miÇdERoÈvi
dZjAÈge0J0
Èa
ÇvozuÈma0n«]
Nesse último trecho de
fala, temos um apagamento da líquida final /r/, o que não deixa de caracterizar
o evento como a supressão do elemento no final da palavra.
Há também, funcionando
como apagamento, a monotongação, que suprime uma vogal do encontro vocálico
como ditongo. Vê-se, por exemplo, em
[Èew
kiÈteøU
ÈfejtU
veXÈgoø«S
finaÈ0seR«S
peÇdZidwi00pReSÈtadU
Èse0J0 paÈgaX]
ou
em
[miÇdERoÈvi]
Em ambos os casos, temos
o apagamento de elementos no interior das palavras.
2.
Assimilação
Assim como o processo de
apagamento, as assimilações tomam lugar de vários versos do poema. Temos, por exemplo, a assimilação da
nasalidade pela vogal que a antecede em passagens do tipo
/ÈviL nosenÈtido mesÈkiøo
Èe
iNÈfame Èda viÈleza/
ou
/Èa
Èa
ÈkeN meÇdERoÈvi dealÈgueN Èa ÇvozuÈmana/
Em outros momentos,
encontramos o vozeamento de fricativas pelo fato de estarem na posição anterior
a um elemento sonorizado, como em
[Èpde0J0
teXÈsidU
tRaÈidUz
Èmajs XiÈdZikUlUZ Ènu0k«
Ènu0k«]
3.
Epêntese
Dentro do discurso de
Osmar Prado, encontra-se um caso de inserção de uma vogal (breve) para a
pronúncia da palavra ‘absurdo’ em
[iÈew
kiÈta0t«Z
8 ÈvezIs
ÈteøU
ÈsidU
XiÈdZikUlU
abi 8ÈsuXdU]
4.
Crase
Temos uma situação
especial, que pode talvez vir a ser definida como apagamento, mas preferimos
tratar como crase. O encontro de duas vogais, formando uma (no caso a ser
exposto, uma glide), seria capaz de definir esse processo que pode ser visto
aqui:
[podeÈRa0w0
ÈaZ
8 muÈlJERIS
8 Èna0w0S ÈterI0 aÈmadU]
Aqui as vogais de mesmo
som das duas palavras acabam se combinando e sendo pronunciadas conjuntamente.
Torna-se possível assim, pelo ritmo e pela fluidez do texto, reunir os fonemas
em apenas um fone só.
Conclusões e observações
De largada, assumimos uma
conclusão óbvia e bastante presente no decorrer do trabalho: o trabalho. A
labuta toda pra produzir – principalmente – as transcrições e ouvir e reouvir o
áudio da declamação do poema nos fez virar a cabeça umas quantas vezes, umas
para trocar de ouvido, e outras pra arejar ela própria. A voz do Osmar Prado,
ator decorado há muito, já se tornou irritante. Pobre homem.
Mas é aí que está a graça. A
partir desse esforço todo, na tentativa de escutar uma fricativa mais posterior
ou mais anterior; de ouvir um /r/ carioca e não um /R/ gaúcho; de entender onde há apagamento, onde há epêntese; a
partir de tudo isso, visualizamos algumas fronteiras e limites que desenham as
ferramentas e os terrenos da Fonologia e da Fonética.
Já no âmbito da especificidade
do discurso poético, o esquema é outro. Nota-se facilmente a peculiaridade
desse tipo de fala. Contrário a uma conversa espontânea ou uma gravação de
certo corpus delimitado, a poesia declamada adquire aqui um caráter único na
sua realização. O ritmo, a sucessão de fonemas, a ênfase em determinados pontos
da pronúncia são características que moldam uma espécie de fala
pré-estabelecida, fala essa com um fluxo de linguagem ágil e correto. Correto
no sentido de completo – unitário. Esse fator de unidade dá a poesia uma sutil
ideia de texto decorado – um texto exato. Não é à toa que esse fluxo acaba
aglutinando todos os versos, um sobre o outro, verso sobre verso, até confundir
a cabeça de quem os analisa.
Tudo isso para explicitar a
dificuldade pela qual passamos e por qual, provavelmente, todo o fonólogo já
passou algum dia.