Raízes Africanas, Solo Gaúcho
Quando
o trem resfolegou na estação, deixando atrás de si , um rastro de fumaça,
lágrimas e infância perdida. Quando a retina plasmou a moldura dos campos e o
contorno dos cerros. Venâncio
acomodou-se no banco de madeira com a trouxa de roupas contra o peito, e lançou
a chispa de seu olhar em direção ao futuro.
Anos
mais tarde, com os filhos espalhados, esmolando nos sinais, a mulher que morreu
cedo, na fila interminável da previdência social. Os lábios grossos ressecados,
mal seguram as baganas e o tremor e inchaço são sintomas do trago e fumo.
Não
mais o verdor dos campos, cancha reta, jogo de osso, truco, galpão e siesta nos pelegos. Albergue e sopa do
pobres. Portas na cara e desprezo. O brilho de outrora, é opaco, a voz roufenha
repete a ladainha, e perturba quem espera ônibus no fim-da-linha.
“ Foto, olha a foto, fotooo”
O
vento da primavera mostra seus primeiros sinais e as juntas doridas alertam que
o mês será chuvoso, ouve que num parque da cidade há grade acampamento, festas
e poderá catar latinhas para vender e quem sabe, as sobras da festança lhe
sejam alcançadas, para aplacar a fome que é sua parceira “hace tiempos”.
Negro
forte, num upa estava no lombo de algum malino,
por diversão e farra, garantindo o municio e
os vícios , e um chego na zona de meretrício , onde as chinas
candongueiras e de pernas grossas amainam o minuano e tornam as noites mais
aconchegantes.
Os
caminhos são os mesmos, as avenidas largas da indiferença, de cada ser
ensimesmado, nos labores da faina diária.
Sob
a marquise no meio da cidade que pulsa ao redor, a saudade dói e corrói como
ácido, o vento da madrugada uiva em seus ouvidos, batendo de encontro ao rosto
aguça os sentidos, máscaras de granito e ferro, luzes frias e insensíveis
balouçam, passos ressoam na calçada, risos vagos e ilusórios, seres indefinidos
e tristes. A marginalia circula livremente, o racismo salta aos olhos dos
homens da justiça e ser negro é crime! A cor da pele o estigmatiza, a chacota e
o ridículo doem mais que mil chibatadas ou ferro ardente em brasa. Os bêbados
vomitam verdades no rosto da sociedade perplexa, órfãos do destino imploram
pão , moedas piedosas caem em suas mãos.
Encolhe-se
no fétido cobertor carcomido e cheio de pulgas, mero espectro, onde a noite em
pesadelos, cavalga fletes de pelo dourado, com seu aperos de prata brilhantes, carona, lombilho, pelegos e badana, a
moda da fronteira, e a voz do bisavô , mansa e pausada, atravessa o oceano e
traz a Mama África para acalentar seu sono.
Foram
cativos em diversas aldeias, seguindo em fila indiana, presos ao libambo , atados pelo pescoço a outros
infelizes, os doentes e insubmissos abandonados ao longo dos caminhos,
gargantas abertas para medo aos demais, carregavam sacos com pedras e areia,
para aumentar a resistência e o suplicio, como premio por viverem ganhavam ração
e fumo e aguardente, eram batizados e obrigados a obedecer e temer um Deus que
não era o seu. Mesma cor, falares diferentes,
igual destinos, mesma sina, jamais haviam visto o mar, um navio, um homem
branco, temiam ser devorados por seres antropófagos na outra margem. Nus,
cabelos raspados, quase sem água e comida. Epidemias avassaladoras, jogados ao
mar os corpos, de volta aos seios de Yemanjá, quando batia forte o banzo,
levando-os a loucura e suicídio.
Cata
lixo em meio ao Parque, revirando restos, olha aparvalhado moças e rapazes,
pilchados, cheirosos, como se obedecessem a um manual, contrastando com os
tradicionais autênticos , sem rédea ou bocal, que chegaram neste lugar e como
desbravadores de outrora, conquistaram o espaço, onde foram segregados com seus
animais, para hoje após os reconhecimento do poder público e adoção pela grande
mídia, virar ponto de referencia.
A
noite fria enregela os ossos, carros temáticos desfilam na avenida fronteira ao
rio que banha a cidade, aplausos, fotos e turistas.
Os
principais jornais noticiam no dia seguinte, estampam manchetes de capa “
DESFILE TEMATICO, NOSSA RIQUEZAS “, encerra a Semana Farroupilha.
Na
parte sobre a cultura africana trazendo o Rei Congo e a Rainha Mina, atabaques, Lanceiros Negros, junto ao
meio-fio próximo a arquibancada, uma figura imponente com um saco preto na mão,
tirador de estopa e vincha na
carapinha branca, cata latas, olhos castigados pela luz, molambo eivado de
cicatrizes pelo corpo e na alma, moldurando um gaúcho despilchado e pés no chão, esquecido e desprezado, correrá
o mundo em contraponto com a beleza do desfile.
No
derradeiro estertor, na campa onde repousa, aponta na banca de revista, e
entredentes, sentindo a agulhada no peito, num supremos esforço balbucia, na golfada derradeira de sangue:
“
Foto, o..lha, a...fo.tooooo”