Sargento
Getúlio,
uma personagem no mundo em busca de razões.
Ser
ou não ser – eis a questão
.................................................
A
que a carne é sujeita. Morrer-dormir
Dormir!
Talvez sonhar. Aí está o obstáculo.
Hamlet
Levo
ou não levo, é isso.
........................................
Morrer
é como dormir e dormindo é quando
a
gente termina as consumições,
Por
isso é que a gente sempre quer dormir.
Sargento
Getúlio
O
presente artigo visa traçar o perfil da personagem Sargento
Getúlio de João Ubaldo
Ribeiro, através da pesquisa do ambiente em que se passa a estória,
o espaço narrativo, discutindo as razões lógicas e os conflitos
internos e externos da personagem, a (des)humanização, reforçando
a ideia do personagem narrador e os motivos de suas ações.
A consulta bibliográfica nos permiti
revisitar a intertextualidade e similitude de Getúlio a outros
personagens da ficção. Para tanto buscaremos conceituação no que
vem a ser A Personagem de
Ficção
“
O Homo fictus é e não é equivalente ao Homo Sapiens,pois vive
segundo as mesmas linhas de ação e sensibilidade, mas numa
proporção diferente e conforme avaliação também diferente. Come
e dorme pouco, por exemplo; mas vive muito mais intensamente certas
relações humanas, sobretudo as amorosas. Do ponto de vista do
leitor, a importância está na possibilidade de ser ele conhecido
muito mais cabalmente, pois enquanto só conhecemos o nosso próximo
do exterior, o romancista nos leva para dentro da personagem, “
porque o seu criador e narrador são a mesma pessoa” (Ob.cit.,p.55)
Neste ponto tocamos numa das
funções capitais da ficção, que é a de nos dar conhecimento mais
completo, mais coerente do que o conhecimento decepcionante e
fragmentário que temos dos seres. “
Forster reconhece e aborda de maneira
difusa, sem formulação clara, e é o seguinte:
a
personagem deve dar a impressão de que vive,de que é como um ser
vivo. Para tanto deve lembrar um ser vivo, isto é, manter certas
relações com a realidade do mundo, participando de um universo de
ação e de sensibilidade que se possa equiparar ao que conhecemos na
vida.
Baseado nestas considerações,
Mauriac propõe uma classificação de personagens, levando em conta
o grau de afastamento em relação ao ponto de partida na realidade,
para efeito deste artigo, a análise será feita em relação à
personagem inventada.
“Inventadas,
a partir de um trabalho de tipo especial sobre a realidade. É o caso
dele, Mauriac, segundo declara, pois nele a realidade é apenas um
dado inicial, servindo para concretizar virtualidades imaginadas. Na
sua obra (diz ele) há uma relação inversamente proporcional entre
a fidelidade ao real e o grau de elaboração. As personagens
secundárias, esta são na sua obra, copiadas de seres existentes.
É
curioso observar que Mauriac admite a existência de personagens
reproduzidas fielmente da realidade, seja mediante projeção do
mundo íntimo do escritor, seja por transposição de modelos
externos. No entanto, declara que a sua maneira é outra, baseada na
invenção. Ora, não se estaria ele iludindo, ao admitir nos outros
o que não reconhece na sua obra? E não seria a terceira a única
verdadeira modalidade de criar personagens válidas? Neste caso,
deveríamos reconhece que de maneira geral, só há um tipo eficaz de
personagem, a inventada;
mas
que esta invenção mantém vínculos necessários coma realidade
matriz, seja a realidade individual do romancista, seja a do mundo
que o cerca; e que a realidade básica pode aparecer mais ou menos
elaborada, transformada, modificada, segundo a concepção do
escritor, a sua tendência estética, as suas possibilidades
criadoras. Além disso, convém notar que por vezes é ilusória a
declaração de um criador a respeito da sua própria criação. Ele
pode pensar que copiou quando inventou; que exprimiu a si mesmo,
quando se deformou: ou que se deformou, quando se confessou. Uma das
grandes fontes para o estudo da gênese das personagens são as
declarações do romancista; no entanto, é preciso considerá-las
com precauções devidas a essas circunstâncias.
Cada traço adquire sentido em
função de outro, de tal modo que a verossimilhança, o sentimento
da realidade, depende sob este aspecto, da unificação do
fragmentário pela organização do contexto. Esta organização é o
elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o principio que
lhes infunde vida, calor e os faz parecer mais coesos, mais
apreensíveis e atuantes do que os próprios seres vivos.
Resumo da Obra
No Romance Sargento Getúlio começa a
falar em uma espécie de monólogo/dialogo em primeira pessoa, no
presente. Amaro, o chofer do hudso,
e o preso são os que ouvem a narração. O preso, orgulhosamente, se
recusa a falar (p. 14).Amaro também não diz palavra,preocupado com
a péssimas condições da estrada. Temos os preceitos gerais para
viagens, observações sobre a viagem atual dos três e, também o
relato de fatos do passado. No interior da narração do passado
surge o presente,como é ocaso do diálogo (sem quaisquer indicações
gráficas) ocorrido por ocasião da prisão de um “comunista
udenista” (sic!!!) em um bordel de Itabaianinha.(p.7). Parada para
descanso.Getúlio continua a narração, à semelhança do capitulo
anterior. Com uma diferença: o preso está amarrado (p.17) e o
monólogo/diálogo conta, presumivelmente, com a participação
apenas de Amaro. A viagem avança. Chegada à fazenda de Nestor
Franco,onde se desenrola toda a ação do capítulo. A situação se
complica. A Policia Federal vem buscar o preso e cerca a fazenda de
Nestor Franco. Acrisio Antunes, sob pressão do governo central,
estudara bem o golpe: Aconselha Getúlio a permanecer na
fazenda,informa a polícia sobre o local,nega a ordem de prisão
(p.28), acusa Getúlio de desertor (p.47) e lava as mãos. Na
batalha, Getúlio degola um tenente. Nestor Franco,ao resistir à
ordem de entregar os hóspedes,dá ocasião à fuga de Getúlio, de
Amaro e do preso, que, está sem quatro dentes, perdidos em castigo
do “caso” a meio coma filha do fazendeiro (p.33 et.seq). A viagem
continua depois da batalha na fazenda de Nestor franco ao iniciar-se
este capitulo Getúlio, Amaro e preso estão em Japoatã, na casa do
“Padre de Aço da Cara Vermelha”, vigário local. Ainda na casa
do vigário de Japoatã. Getúlio recebe novos emissários – desta
vez pistoleiros – de Aclézio Antunes, com os quais negocia (p.63
ECT. Seq.).Não chegando a uma solução totalmente aceitável – e
não tendo os pistoleiros conseguido pega-lo desprevenido e
elimina-lo – Getúlio resolve partir com Amaro para entregar o
preso em Aracaju. O hudso não tem mais gasolina e a viagem continua
a pé (p.69) até Japaratuba,onde Getúlio se hospeda na casa de
Luzinete, sua companheira eventual, com a qual recusara casar-se.
(p.73). Assalto à delegacia com objetivo de roubar metralhadoras,
que não são encontradas. Ainda na casa de Luzinete. Getúlio está
encurralado. A força federal cerca a casa, travando-se violenta
luta. Morre Amaro e morre Luzinete, esta ao trabalhar algumas bananas
de dinamite que poderiam ser utilizadas como bombas. Getúlio, agora
sozinho, começa a beirar o delírio. Não só cria uma família
(p.84) como ainda organiza um exército ( p.95 et. Seq.), cujo
comandante,Capitão Gerardo Bonfim do Cansação, persegue São Jorge
pelos descampados do sertão sergipano. Getulio consegue, não se
sabe como, deixar a casa de Luzinete, arrastando atrás de si o
preso.Desce em uma canoa pelo rio Sergipe chega até a barra dos
Coqueiros,onde enfrenta uma força militar que o elimina.Presume-se ,
do ponto de vista narrativo, que o preso sobreviva.
Análise da personagem
Alguns estudos críticos interpretaram
a obra, apontando para um esquema binário no qual se confrontam
arcaísmo e modernidade, racionalidade e magia. Malcon
Silverman,
cuja leitura, embora contribua para a compreensão da obra, limita
seu alcance a uma formulação maniqueísta que não deixa de ser
redutora: “ Num plano muito geral, Sargento
Getúlio
é uma luta entre o velho e o novo,entre permanência e mudança,
entre beligerância e não violência,entre o rural e o urbano”
(Silverman,1981,p.105)
José H. Dacanal
(1973) ,
“Getúlio é um sargento sem mundo porque o universo arcaico em que
vive já não tem mais condições de existir e a figura que ele
encarna não tem a menor possibilidade de se encaixar na nova
proposta de uma sociedade democrática e racional.”
Maria Lúcia Aragão
insiste também no fato de que, “incapaz
de entender o universo em transição, Getúlio
caminha para sua “autodestruição”, impossibilitado de conceber
a existência fora da rede de poder na qual está inserido desde
muito tempo”.
Zilá Bernd
apresenta e traça um
paralelo entre a trajetória de Getúlio
e defende que o mito de
Antígona está na base das complexas relações de poder que se
encenam no âmbito do romance e que “
a obstinação do sargento em não acatar a ordem do chefe,
corresponde de algum modo à rebeldia de Antígona e sua obstinada
determinação em não acatar as determinações do soberano quando
estas vêem de encontro aos ditames da sua consciência”.
Se as coisas impossíveis podem ter
mais efeito de veracidade que o material bruto da observação ou do
testemunho, é porque a personagem é, basicamente, uma composição
verbal, uma síntese de palavras, sugerindo certo tipo de
realidade.Em Sargento
Getúlio,por exemplo, a
farda, a faca, as botas da personagem-título ganham sentido,
referidos em seu temperamento agressivo, o
hudso , as cantilenas e
rezas, a efabulação em Amaro, a feminilidade, o amor maternal, a
passividade de Luzinete, símbolos respectivos de personalidades. E
as três personagens existem com vigor, não só porque se
exteriorizam em traços materiais tão bem combinados, mas porque
ecoam umas às outras, articulando-se num nexo expressivo.
O Sargento
Getúlio no referencial
teórico acima citado é apresentado numa dicotomia, entre o novo e o
velho, o desmantelamento do universo arcaico em que vive, o caminho
inexorável para o fim e a obstinação ferrenha com fito de levar a
cabo sua missão. Conduzir o preso até o seu destino, nesta linha de
raciocínio podemos visualizar o Homo
Fictus e sua similitude com
a personagem. Getúlio, come e dorme pouco, vive intensamente as
relações humanas, sobretudo as amorosas. Com Amaro;
“Ô Amaro, íu, ô fulô, se eu
fosse Lampião, tu ia ser Maria Bonita?” (SG, 115).
Amaro torna se o fiel escudeiro de
Getúlio, consegue cativa-lo, sendo digno de sua confiança, em seus
devaneios e delírios ,Amaro está para Getúlio como Sancho Pança
para Quixote. Mas, sem dúvida, é a descrição da morte de Amaro
que revela como Getúlio era identificado com ele. Trata-se de um dos
momentos mais tocantes no romance. A reação psicológica à morte
do companheiro é intensa. O olhar
parece ser o elemento
através do qual a identificação entre os dois se revela.
“E eu. Forcei as vistas dessa
forma e não pude nada ver mesmo, só estava sentindo, e apaguei a
fogueira da noite com as mão se peguei a cinza que ficou, esfreguei
na cabeça e na cara e não quis fazer mais nada por muito tempo,
porque fiquei triste e então eu dei um grito ouvido em todo Estado
de Sergipe, o chão tremeu e eu sentei de novo.” (SG, 127)1
“ E nada, de formas que, quando
eu consegui acertar dois balaços no infeliz lá, que ele foi
desencostando no mourão da cerca, desencostando, desencostando, até
que eu vi que era a
última desencostada que ele dava na vida, eu espiei de banda e vi os
olhos de Amaro.” (SG,
128).
Com Luzinete:
Ela representa para o Getúlio o
encontro com o sexo, aceitando e querendo-o nas condições em que se
encontra, sujo ,mal-cheiroso, abrutalhado e violento no ato sexual:
“É um diabo duma mulher grande,
duas braças de mulher de cima para baixo, cinco arrobas de mulher da
legítima, no pesado, uma mulher boa e quer que eu faça um filho
nela e fique aqui morando, só fazendo mais filho.Eu disse, se eu
faço um filho, o que é que eu estou fazendo?Estou é ficando
porqui,estou é pensando na criação. E depois me amarro, fico
parado e cheio de raiz,não me serve. (SG, 108).
Nesse excerto temos uma das tantas
contradições de Getúlio, ele quer constituir família ,inclusive
cria uma legião de filhos, todos machos como ele, quando “extrai’
os dentes do prisioneiro , admira sua obra de arte ao ponto de
falar para Amaro, que se conseguisse se livrar dessa empreitada iria
virar dentista. Veja-se que estas assertivas ao passarem a ideia de
acomodamento, calmaria e rotina, são de imediato negadas e o
espírito livre ,volta a ser a parte dominante de sua existência.
Luzinete morre durante o cerco da
força militar à sua casa. Morreu na explosão de bombas que ela
mesma guardara de um homem que vivia amancebado com sua irmã e que
trabalhava numa pedreira.
“Sabe
vosmecê que minha mulher agora é a lua? Ficou lua quando explodiu
com as bombas “ (SG,138)
Getúlio está sozinho, só lhe resta
o prisioneiro, adjetivado pejorativamente – peste, coisa, bicho,
traste - o qual ao longo do romance não profere uma palavra, e
maltratado, tens seu dentes arrancados, sofre as piores privações,
a violência e crueldade de Getúlio, revoltam e indignam o leitor, e
por mais paradoxal que possa parecer , o leitor se comove com o sua
obstinação de levar a cabo sua missão.( Mito moderno das Elite da
Tropa – “ Missão dada e missão cumprida”). Há espaço pra a
ironia e sarcasmo.
” Não ficou bem sem os dentes, a
boca de fiofó perfeita e quando a fala saí, sai assobiada. Fica
interessante.também não tem tomado banho, deve estar cheio de
lêndias na barba e fede bastante. Bom, cada qual vive como
quer.(SG,92)
Conclusão
João Ubaldo Ribeiro constrói o mundo
de Getúlio rompendo barreiras e destruindo convenções narrativas
com tal furor que não é nada fácil organizar o caos, mesmo que
este caos seja apenas aparente. Comparado com as demais obras da nova
narrativa épica, Sargento
Getúlio e a que apresenta
o mais acentuado irracionalismo técnico-narrativo.
Getúlio busca seu lugar no mundo, e
neste processo e vitimado pelas circunstâncias e desencontros de
dois mundos distintos, há sim, audestruição, porém sua essência
permanece enraizada como a flora do sertão, como o sol inclemente,
causticante, mas não mata a gênese do sertanejo. A origem da
personagem, empedernido, seco e duro, cretado e partimentado,
dividido, porém convicto de seu lugar no mundo, mesmo ao ser traído
e abandonado pelo mandante da prisão e condução do preso, nas
mortes de Amaro e Luzinete, mostra o sua humanização ao sentir a
dor da perda, e a finitude da solidão.
Na similitude de Getúlio
com outros personagens da ficção, nos lembra Zilá Bernd “
É nessa hipótese de que o mito de Antígona está na base das
complexas relações de poder que se encontra que se encenam no
âmbito do romance e que a obstinação do sargento em não acatar a
ordem do chefe, corresponde de algum modo à rebeldia de Antígona e
sua obstinada determinação em não acatar as determinações do
soberano quando esta vêem de encontro aos ditames de sua
consciência.(CM,P.15).
Existem semelhanças entre Getúlio
e Damião de Terras do Sem
Fim de Jorge Amado , ambos
jagunços , cumprindo ordens sem titubear, um sem número de mortes
nas costas, Damião tem seu inferno existencial, pânico e loucura, e
não consegue realizar uma tocaia:
“ prenderam seus braços, não
pode matar. Prenderam seu coração,ele tem que matar... pelo rosto
negro de Damião choram os olhos azuis de Dona Teresa... A mata se
sacode em riso, se sacode em pranto , a bruxaria da noite rodeia o
negro Damião. Ele sentou no chão e chora mansamente como uma
criança castigada.”(TSF,80).
Getúlio também sofre , berra , sonha
delirante e megalomaníaco, briga com tudo e todos, e sua humanização
está na verossimilhança dos fatos narrados, a obstinação em
cumprir seu fado e levando em frente ,mesmo sabendo da proximidade da
morte e do fim. Na referência ao seu homônimo famoso Getúlio
Dornelles Vargas , Presidente Brasileiro, que cometeu suicídio,
visto o isolamento no poder, nos deixa no legado de sua
carta-testamento (deixo
a vida para entrar na História)grifo
nosso. Getúlio Santos
Bezerra, personagem
emblemático, vigoroso, instigante(deixa
a estória para entrar na vida da literatura brasileira).
Deixemos que ele reafirme sua
identidade:
“ eu sou eu.meu nome é um verso:
Getúlio Santos Bezerra, e de vez em quando eu penso que, não tendo
ninguém melhor do que eu, tudo que pode me acontecer é melhor do
que os outros”. “ e meu nome é um verso que vai ser sempre
versado e se tem lua alumia e se tem sol queima a cara”
Bibliografia
RIBEIRO,
J.U.
Sargento Getúlio.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1982
SHAKESPEARE,
W.Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes.Porto Alegre,1999
CANDIDO,
Antonio. A personagem de Ficção
DACANAL,
José Hildebrando. A nova narrativa épica
BERND,
ZIlá – O caminho do meio, Editora UFRGS,Porto Alegre, 2001
AMADO,
Jorge – Terras do sem fim , Rio de Janeiro,1978
JOÃO
DE
DEUS VIEIRA ALVES
Sargento
Getúlio,
uma personagem no mundo em busca de razões.
2011