Sempre tive medo de agulhas,
quando brincava de cavalinho nos travesseiros colocados na janela, desce daí
guri, vou contar pro teu pai quando ele chegar, pois meu sonho era ter um
cavalo igual aqueles que via puxando os canhões no desfile militar, mais tarde
fiquei sabendo serem mulas e os canhões não eram de brinquedo, os arreios não
estavam firme no parapeito e caí de cabeça no chão, entre os galhos das
roseiras; resultado são três pontos sobre o olho esquerdo, na verdade ao todo
são nove, mais três quando cabeceei a nuca de um zagueiro na decisão de
futebol, vila x vila, quando na escaramuça depois do jogo, desmanchamos as goleiras
de taquaras e na pressa de recolher as roupas , veio junto a calça vaqueira,
orgulho do melhor atleta deles e hasteamos no eucalipto mais alto do campinho
onde atuávamos, e depois incendiamos num
ritual de guerra tal qual os índios que víamos no cinema nas matinés, moço o
pai disse pra eu dizer pro senhor que eu sou filho dele aí o senhor que conhece
ele deixa eu e o meu irmão entrar de graça que depois ele fala com senhor moço,
tá bom?, uma judiaria sei disso hoje, pois naquele inverno rigoroso da
fronteira, o pobre ia pra escola só de bermuda e chinelos de dedos, tão ou mais
pobre e órfão como muitos de nós, e outros três pontos lembrança de uma garrafa
de uísque barato que estilhaçou, quando os
“homi” invadiram o cabaré, pra ver se tinha “de menor”, não adianta a
gente sabe, tapa na cara, chute na
bunda, depois eu volto neguinha tô trabalhando, na parede vagabundo, não maloca
o bagulho porra!, fui escondido pelas
putas debaixo da cama, todo mijado e chorando, tomei muita água de melissa para
me acalmar, tudo isso, quando precisou costurar, era necessário anestesia com
injeção dentro do corte aberto, precisava? Vai vendo. Levei facada, que ficou a
milímetros da jugular, pois se não é o bêbado
protetor que estava em pé no corredor do ônibus, que com sua voz
embargada cantava só você que me ilumina meu pequeno talismã e faz de conta que sou o primeiro e um homem
de moral não fica no chão ,Adeus Tia
Chica, fomos recebidos à bala, porque vago não sesteia nem faz pausa para
cafezinho e baixar policia conta ponto para os manos, ei tio liga pra FASE e
avisa que vou tá lá antes do meio dia prá garantir a brita, e os incêndios, bem estes não avisam, quando
começam e nem onde vai ser, e os bombeiros experientes olhavam pra ele e
apagavam com os olhos e mesmo que tu
tenha acabado de sentar a mesa, pedir
uma cerveja gelada porção de fritas e
picadinho, mete-se a cara e vamos em frente, tudo isso sai no mijo, mas agulha
doutor, agulha não, pode ser antibiótico via oral? Gargarejo de malva morna,
com sal e comprimidos, cambará, ou aquelas xaropadas que os jujeiros vendem?
Demora,sim,demora.eu aguento, mas injeção,não, isso não, pois é quando se larga
do serviço tudo que se quer é entregar o armamento tirar o fardamento e sair
correndo para casa ,o colete salva-vidas, que após horas com o calor
escaldante, parece que faz parte do teu exoesqueleto, e o cheiro é coisa que
impregna e tu leva anos até ser desfeito,. O destino,ah,o destino, nos prega
peça e ver outro colega de farda chorando te cala fundo, porque nossas vidas
são espelhadas,qual foi? Que houve?Minha filha, precisa de transfusão de
sangue, ninguém lá em casa é compatível, no setor de pessoal os doadores foram
doar para um amigo da unidade que ajudou a consertar a viatura, aquela que o motorista tira a bateria do fusquinha dele
e coloca para não ficar a pé no setor, é
raro eu sei, AB positivo; é o meu digo de supetão, e o senhor doaria? Claro,
respondo, já me cagando de medo da agulha. Tive Natais esquecíveis e outros
memoráveis , mas o presente mais singelo e hoje amarelado e com pátinas é um
cartãozinho com letra tremula, com desenho de um magricelo fardado e a mensagem
. AO MEU PAPAI NOEL DE SANGUE.”BIGADA”
Bah, tchê! Final supreendente e emocionante de uma narrativa frenética, dura, realista, perfeita. A gente lê e o texto corre ao nosso lado, marcando ritmo, ditando a respiração. Muito bom! Parabéns, meu craque!
ResponderExcluirFinal que nada, é a dura verdade de nossa profissão herdada dos ancestrais. (Nara Elizene Porto Alves)
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